quarta-feira, 9 de março de 2011

Glossário

A saudade de um surgia sem que o outro pudesse evitá-la. Mas não é mesmo assim que saudade funciona? Vinha em manhãs comuns, na embalagem de uma melancolia sem motivo, surpreendente após um sono pouco além de tranquilo. Vinha na forma de outras saudades, também, saudade de outras pessoas, de sensações e lembranças espalhadas pela vida. Mas a dúvida se mantinha apenas enquanto julgava prudente enganar a si mesmo: era saudade dele, o peito não deixava negar. E com ela há muito já não havia o que fazer. Olharia fotos. Escreveria cartas sem qualquer novidade. Não as mandaria. Evitaria aqueles discos, mas só por uns minutos. Logo, os colocaria para tocar. Relembraria. Contaria a história para si mesmo, com cada detalhe, em ordem cronológica. Reviveria o conto curto com direito a pausas dramáticas. Procuraria, mais uma vez, mensagens camufladas em todas as entrelinhas. Inventaria. Encontraria. Voltaria brevemente à realidade. Tarde demais. Narraria possibilidades. Pintaria possíveis cenários, todos mais contentes. Deixaria as ideias se perderem por uma vida em potencial. E então sentiria vontade de falar sobre. Mas todos os amigos já teriam se cansado do assunto. Haveria repetição em qualquer coisa que se dissesse a respeito. Fugiria. Não seria capaz, descobriria. Ficaria sozinho, ouvindo àquelas músicas, escrevendo aquelas cartas. Ficaria sozinho, com um fardo a engolir, com as mãos atadas, sentindo a falta. Isso é saudade.